Por Thamyra Thâmara e Marcela Lisboa
Do neologismo ao surgimento
É muito comum ver nas letras de funk as gírias que surgem nas favelas cariocas virarem hits e circularem com certa normalidade no asfalto. Quase sempre os MCs são os responsáveis em espalhar todas essas essas inovações linguísticas que surgem dos becos e vielas. Foi o caso do Mc TH que, em 2016 lançou o “MEC”, que significa “ficar tranquilo”, “suave”, e logo depois a gíria local já estava na boca de geral.
Foi a partir daí que o artista visual, roteirista e diretor Raphael Cruz em 2018 trouxe pela primeira vez o neologismo “mecnologia”. Para ele mecnologia são soluções pensadas pelos jovens para resolver tensões do dia a dia, como tomar banho na caixa d’água para driblar o calor ou dar calote no BRT para resolver a falta de acesso ao restante da cidade.
Logo em seguida a Naya, agência de publicidade focada em classe c e d junto com o GatoMÍDIA, espaço de aprendizado em mídia e tecnologia, lançaram um vídeo onde moradores do Complexo do Alemão usavam óculos de realidade virtual e vivenciavam pela primeira vez uma história imersiva em 360º. Na gravação as crianças falavam sobre o que era “ficar mec” na favela, conceituando a própria experiência como Mecnologia, a ciência da tranquilidade.
Antes de tudo, nois por nois
A favela sempre foi um lugar de produção de conhecimento, sobrevivência no mundo cão e da invenção de tecnologias sociais para resolver problemas de escassez de recursos e da ausência do estado em proporcionar saneamento básico, educação de qualidade, saúde e segurança. As tecnologias sociais inventadas pela favela teve a gambiarra como estética e principal ferramenta. Aqui, muito mais do que “faça você mesmo”, sempre foi “faça com o que tem”. Do mototaxi que resolve o problemas de mobilidade, aos puxadinhos que resolvem os de moradia, ou o gatonet criando acesso a internet. A periferia foi criando sua própria forma de estar na cidade. Colocada à margem, mas se auto referenciando em suas próprias criações.
No Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, seu Ismael Gonçalves foi responsável por criar escadas, calçadas e adaptar redes de luz e água. Hoje tem uma estátua em sua homenagem na entrada da favela da Grota. Retratando essa realidade, na música temos os imortais Sabotage e os clássicos dos Racionais Mcs que, recentemente, tiveram seu álbum “Sobrevivendo no Inferno”, que eles chamam de raio-x do Brasil, transformado em livro e foi considerado leitura básica para o vestibular na Universidade de Campinas. Sem contar a literatura com Carolina Maria de Jesus, que retratava a realidade da favela do Canindé nos anos 50, ao recente sucesso “Sol na Cabeça”, de Geovani Martins.
Do bonde que tá passando ao fogo no parquinho
Com a globalização e o avanço exponencial da tecnologia, as tecnologias digitais têm se tornando mais próximas da realidade de pessoas comuns. Seja por ter à mão um smartphone ou porque ter uma impressora 3D em casa já não é mais um sonho impossível. A periferia sempre falou por si por meio da música, no samba, no rap, no hip hop ou no próprio funk. De vinte anos para cá as favelas cariocas têm sofisticado o megaphone, indo do rádio ao streaming, da fotografia a projeção mapeada, dos jornais comunitários a programação de site, dos estúdios ao “faça você mesmo” no youtube. A Lei de Moore estava certa. Não poderíamos mencionar o alcance tecnológico, ele só não sabia que a favela estaria lá do outro lado da ponte.
Se em 2007 as lan houses* foram responsáveis em democratizar o acesso a internet nos territórios periféricos. Atualmente, 90%** de jovens de favelas cariocas têm acesso a internet de computadores pessoais ou pelos próprios smartphones. Esse público não apenas faz download (baixar arquivo da internet), como também faz upload (subir arquivos para internet). Colocando na rede não apenas sua produção de vídeo, fotografia e (ou) música, mas também seu modo de vida, seu olhar sobre seu lugar de moradia, sobre o restante da cidade e do mundo. É o que acontece quando jovens participam do GatoMÍDIA e aprendem a programar. Eles começam a criar jogos que falam sobre suas vivências e questionam problemas que sofrem em seu dia a dia como o jogo Meritocracia e Transfobia.
Além do acesso à internet dentro da favela, o uso das redes sociais e a possibilidade de aprender a programar vendo um tutorial no youtube, tem possibilitado que as camadas populares possam ampliar sua voz para o mundo em grande escala, seja reivindicando direitos sociais, produzindo arte, tecnologia ou se conectando com jovens de outras favelas do Brasil e do mundo.
O geógrafo brasileiro Milton Santos estava certo quando em 1950 disse que com a globalização os pobres teriam acesso aos meios de produção e fariam o que ele denomina de “revanche das periferias”. Pretos, indígenas, pobres, nordestinos, quilombolas, geraizeiros, ribeirinhos, populações tradicionais se apropriando dos meios de comunicação de massa e reproduzindo sua voz globalmente sem intermediários. É o que carinhosamente chamamos de Fogo do Parquinho!
O meu país é o meu lugar de fala
Já questionaram se o que trazemos aqui seria “afrofuturismo”, movimento artístico e tecnológico que aponta pessoas negras como o centro, reimaginando um mundo em que negros e negras vivam em condições igualitárias em todo o mundo. Não sabemos. A realidade das favelas e periferias do Brasil, sobretudo do Rio de Janeiro, são repletas de todos os excluídos. Obviamente que sua constituição segue, em maioria, formada por pessoas negras, mas é impossível negar o circuito migratório e de acolhimento aos excluídos que estes territórios trazem. Nordestinos, Angolanos, Congoleses e Chineses são comumente vistos nas favelas cariocas. Estes, inclusive, já dominam alguns negócios locais como os aluguéis de imóveis, restaurantes, igrejas, mercadinhos e no entretenimento, com os forrós do Parque União na Maré.
E é justamente desse aglomerado de pessoas, com trajetórias e culturas distintas, ocupando o mesmo espaço que surgem soluções criativas e modos de vida próprios.
Quando o Estado não aparece de outra forma além dos camburões, a cultura do “Faça com o que tem” é a única solução. Remixar tecnologias e ressignificar produtos, espaços e ferramentas é o que observamos nos centros periféricos por aqui. Conceitos como “upcycling” fazem parte da história de diversas famílias empobrecidas que são obrigadas a compartilhar roupas como herança de família. E não havia nada de glamuroso nisso.
Assim com a cultura maker que lá na América do Norte queria incentivar pessoas a serem cada vez mais criadores do que consumidores. No sul global isso já era uma realidade com a desobediência tecnológica de Cuba nos anos 60. As periferias do mundo criaram o movimento dos fazedores antes disso virar cool.https://cdn.embedly.com/widgets/media.html?src=https%3A%2F%2Fwww.youtube.com%2Fembed%2FGidWQOTBL9s%3Ffeature%3Doembed&url=http%3A%2F%2Fwww.youtube.com%2Fwatch%3Fv%3DGidWQOTBL9s&image=https%3A%2F%2Fi.ytimg.com%2Fvi%2FGidWQOTBL9s%2Fhqdefault.jpg&key=a19fcc184b9711e1b4764040d3dc5c07&type=text%2Fhtml&schema=youtubeVídeo produzido pelo Gato Mídia com Diego “o barbeiro”, do Complexo do Alemão.
Mas então, que porra é essa de mecnologia?
É a grande ciência de seguir “tranquilo”, em busca de paz interior, em meio ao caos gerados pelo capitalismo e pelas políticas de exclusão dos já marginalizados. Mecnologia é um modo de vida. É a capacidade de sonhar com um outro futuro possível, acreditando em si mesmo. É ficar “mec” diante do policial que te revistou pela quinta vez só esta semana.
É encontrar a paz na igreja, onde você consegue garantir alguma dignidade diante da sua comunidade. E conseguir dançar por mais de doze horas ao som de 150bpm para lançar fora as dores do tempo presente. Ou se apegar na força dos ancestrais e no axé coletivo para seguir em frente depois de uma noite de tiroteio. É o conceito trazido por Mc Sapão, um clássico dos anos 2000. Ficar tranquilão, numa boa ouvindo o batidão.
Mecnologia é “desenvolver uma dança como o passinho, que mais parece o corpo fugindo das balas perdidas”, mas que acabam encontrando sempre os mesmos corpos, como classifica a artista visual Andressa Nubia. É capoeira. É samba de roda. É chorar ouvindo o arrocha. É um convite a uma vida de autonomia.
É entender que a superação vem de dentro para fora e que o pensamento é força criadora. E, nesta via, o primeiro mandamento é ficar mec. E quem sabe, assim, começar a disseminar a filosofia, pra dentro e pra fora, de que a favela é um lugar de solução e não de problemas.
Nota:
- 4 PASSOS, Pâmella S. Lan House na Favela: cultura e práticas sociais em Acari e Santa Marta, 2013.
- Solos Culturais, pesquisa vinculada a ONG Observatório de Favelas. Realizada em 2012, em cinco favelas do Rio de Janeiro: Rocinha, Cidade de Deus, Complexo do Alemão, Complexo da Penha e Manguinhos / organizadores: Jorge Luiz Barbosa e Caio Gonçalves Dias ; ilustrações de Paula Santos — Rio de Janeiro : Observatório de Favelas, 2013.