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Ancestralidades e a busca por uma identidade negra plural nos trabalhos da artista visual Andressa Núbia e da artista musical Umlilo

Meu desejo aqui é pensar como o afrofuturismo tem sido uma abordagem contemporânea que busca refletir identidades negras plurais em contrapartida a uma ideia única sobre o que é ser negro proposto pela colonização na África do Sul e no Brasil. O objetivo não é debruçar-me de forma profunda na história colonial desses dois países e nem nos seus variados efeitos na atualidade. Afinal, um único artigo não seria capaz de esgotar o assunto. O interesse aqui é debater colonização e afrofuturismo tendo como ponto de partida a viagem de férias que fiz no final do ano a África do Sul. A partir dos meus relatos afetivos, como uma mulher negra em diáspora, em Johannesburgo e dos trabalhos de duas artistas, uma brasileira e outra sul africana, refletir sobre identidades negras e essencialismo.

A primeira artista que enfoco aqui é Andressa Núbia, uma artista visual contemporânea, cria do Complexo do Caju, no Rio de Janeiro, que vem desenvolvendo trabalhos multidisciplinares com arte e tecnologia. Sua prática inclui fotografia, cinema, de adereços, stencil, colagem, arte digital, 3d, instalação, projeção mapeada e realidade virtual. Em suas obras ela tem como tema central a questão da negritude, principalmente por meio da figura da mulher negra. Núbia explora no seu fazer artístico memórias da infância, histórias ouvidas dos mais velhos e espiritualidade. Apostando no periferismo estético e no afrofuturismo como linguagem. Em 2019 realizou a instalação Iroko Afrofuturista, um portal de reconexão entre a materialidade cotidiana e a dimensão sagrada que remixa gambiologia, artes visuais e vídeomapping. Participou da mostra ‘Afrofuturista Future Focus’, com o trabalho ‘Yalodé Mulheres Geradoras do Mundo’ que passou entre 2018 e 2019 por lugares como Seattle, África do Sul, Accra, Cidade do Cabo, Nairóbi e Ghana. Fez parte de outras exposições como Ocupação Maré Brasil (2017), A rua por elas — Conexidades (2018), Noite — Trovoa (2019), Moda de Resistência — Vesti Rio (2018), Awá Nago (2018), e em 2019 no Festival Sesc de Juventude, Margem, no Sesc Madureira, com a série visual Proteção e ainda da 1º Bienal Black Brazil Art. Além disso, ela é curadora de Novas Tecnologia do GatoMÍDIA, uma rede e metodologia de aprendizado em mídia e tecnologia para jovens negros de espaços populares.

A segunda artista convidada para essa conversa é Umlilo, uma artista queer, não binária, multi-disciplinar e conhecida como Kwaai Diva, estilo de música sul africana que nasceu nos anos 90. O ritmo tem como base uma mistura de batidas house mais lentas, percussões africanas, um som de baixo bastante marcado, e letras declamadas ou repadas. As músicas kwaito são normalmente em línguas indígenas sul-africanas. Umlilo explora e ultrapassa os limites do kwaito eletrônico e tem sido um elemento frequente na comunidade musical internacional por fundir uma estética de vanguarda com tecnologia, arte visual, dança, cinema e design de moda. Além disso, ela lançou dois EP visuais aclamados que foram lançados em todo o mundo, receberam mais de 100.000 transmissões on-line e apareceram em plataformas de filmes, literatura de arte, moda e música.

Mas antes que cheguemos propriamente em seus trabalhos, não posso deixar de pontuar o lugar de cada uma delas. Andressa Núbia é brasileira, negra, de um país colonizado por Portugal que viveu durante mais de trezentos anos num regime de escravidão aos negros. Já Umlilo é sul africana e nasceu num país que foi colonizado pela Inglaterra e vivenciou 44 anos do regime de segregação racial conhecido mundialmente como o Apartheid . Enquanto Núbia é uma negra, não retinta, na diáspora que naturalmente seria confundida por coloured em Johanesburgo. Umlilo é uma mulher negra africana de descendência indígena. Bom, minha intenção aqui não é encontrar de forma inocente pontos comuns entre duas mulheres negras de diferentes países que tiverem diferentes formatos de colonização. A própria tentativa aleatória já seria um erro. Meu investimento parte da vontade de articular a partir dessas duas artistas e de minha viagem à África do Sul, a ideia de uma identidade negra não fixa que vai para além do continente africano. Como afirma Franz Fanon (2008), “provavelmente aqui está a origem dos esforços dos negros contemporâneos em provar ao mundo branco, custe o que custar a existência de uma civilização negra”.

Então, quero cruzar os limites do oceano e desenhar uma linha que liga artistas negras, afrofuturismo e identidade negra. Sem a pretensão de entrar propriamente nos amplos conceitos do que é arte ou identidade. Entretanto, seria tolice se partisse do nada. Traço uma linha dentro da perspectiva do que Stuart Hall chamaria de experiências negras. Hall (2013), enfatiza que podemos entender o caráter traumático da experiência colonial ao reconhecer as maneiras pelas quais as experiências negras foram posicionadas e sujeitados nos regimes dominantes de representação. Diante disso, me parece que ainda que o caráter traumático da escravidão e do apartheid esteja presente na experiência dessas duas mulheres negras, elas possuem uma vontade pulsante de transcender e criar, por meio da arte, experiências negras múltiplas e plurais que mais se assemelham a uma vibração inconsciente de provar, custe o que custar, a existência de uma civilização negra. Se branquear ou desaparecer era uma demanda da colonização que persiste ainda hoje reatulizada nas novas formas de colonialismo moderno e no desejo de mudar de cor na síndrome de bleaching. Mas justamente nesse ponto que Andressa Núbia e Umlilo se unem numa pulsão quase que reparatória de se tornarem cada vez mais pretas.

No meio disso tudo, o afrofuturismo apresenta uma estética cultural, filosófica e artística que combina elementos de ficção científica, fantasia, arte africana e da diáspora, afrocentricidade e realismo mágico com cosmologias não-ocidentais. O objetivo não é apenas revisitar, interrogar e reexaminar os eventos históricos e traumáticos do passado como prospectar soluções para outros futuros possíveis. Em certo sentido, podemos dizer que o afrofuturismo é o desejo por se construir uma África que se perdeu para aqueles que fizeram a passagem para o outro lado do oceano. O desejo por imaginar futuros negros que decorrem de experiências afrodiaspóricas através da lente da ancestralidade, tecnocultura e ficção científica. Um chamado para que as pessoas negras comecem a pensar e a criar arte com uma mentalidade afrofuturista.

Do outro lado, a Afrotopia nos ensina que antes de reimaginar a África é preciso conhecê-la para além da ideias de bem e mal, uma vez que, estamos falando de um continente com 54 países e diversas culturas e religiões. Diante desse horizonte podemos dizer que outro futuro africano e diaspórico está tanto longe das armadilhas da produção do outro subjugado como da exaltação ingênua de uma África perfeita. O senegalês Felwine Sarr, criador do conceito, defende que afrotopia é uma utopia ativa que procura no real africano a possibilidade de transcender. Não defende nem o afro-pessimismo (que olha para o continente como estando à deriva), nem o afro-euforismo (que olha para África como o futuro econômico). Para ele é fundamental lutarmos para uma representação justa da África para além do continente que o ocidente estereotipou há anos por meio do colonialismo. Sarr vai além quando afirma que a descolonização não é apenas territorial e não acaba com as independências dos países. Para ele, “o mais importante é a descolonização intelectual, psicológica, do conhecimento”.

Minha primeira viagem para o continente foi em 2018 para Angola. Eu tinha muitas expectativas sobre o que eu viria por lá. As relações entre Brasil e Angola existem desde a época da escravidão e estar ali anos e anos depois era para eu revisitar um passado e ao mesmo tempo buscava encontrar um futuro possível. No primeiro momento me apeguei a tudo que tínhamos em comum:comida, a música, as influências portuguesas e em muitos aspectos culturais eu vi o Brasil ali. Do outro lado, os pretos de Angola e os pretos do Brasil eram muitos diferentes. As relações familiares, a cultura dos relacionamentos e as formas de pensar. Eles eram pretos da África. Eu, uma preta da diáspora não retinta. Apenas uma mulata. Janaina Damaceno, doutora em antropologia e professora de afrovisualidades na Universidade Federal Fluminense (UFF), costuma dizer que o Brasil inaugurou uma nova forma de ser negro no mundo. Por causa do colorismo temos negros de várias tonalidades de cor de pele e experimentamos, no Brasil, diferentes vivências de negritude e racismo. Então, estar na Angola foi me sentir parte e não parte dali ao mesmo tempo. Na fronteira.

Um ano depois, em 2019, viajei para África do Sul e por mais que não tenhamos registro de negros escravizados de lá que tenham ido para o Brasil, me senti mais conectada com as pessoas de lá. Talvez por Johanesburgo ser uma cidade cosmopolita e progressista. E por ter encontrado lá uma cena própria, autoral e autêntica de moda, fotografia e música. Não sei ao certo todos os motivos, mas é fato que me senti mais conectada com essa África do que com as outras. A África do Sul é um país que valoriza a memória, preserva o passado e ao mesmo tempo prospecta outros futuros. São mais de 11 línguas oficiais no país. Onde o inglês é apenas mais uma usada, muitas vezes para falar com turistas e estrangeiros. Eu vi por lá uma juventude que se recusa a fazer do inglês sua primeira língua, que faz questão de afirmar sua língua originária. Uma juventude que preserva a tradição dos ancestrais sem deixar de olhar para o futuro. A memória de Mandela está em todos os lugares e até aqueles que não concordavam totalmente com sua atuação política, o respeitam. Se em Angola eu era mulata, na África do Sul eu era coloured. Eu estava em casa e também não estava. Na verdade, não existia mais esse retorno a uma África imaginada ou desejada. Talvez ainda exista um sanfoka possível; olhar para o passado para recriar outros lares. Sim, outros lares, mas nunca o nosso “real” lar. Porque seguimos como frutos estropiados da escravidão negra no Brasil assim como Fanon um estropiado da guerra do pacífico seguimos recusando a toda forma de identidade que nos ampute.

“Apesar de tudo recuso com todas as minhas forças essa amputação. Sinto -me uma alma tão vasta quanto o mundo, verdadeiramente uma alma profunda como o mais profundo dos rios, meu peito tendo uma potência de expansão infinita. Eu sou a dádiva, mas me recomendaram a humildade dos enfermos… Ontem, abrindo os olhos ao mundo , vi o céu se contorcer de lado a lado. Quis me levantar, mas um silêncio sem vísceras atirou sobre mim suas asas paralisadas. Irresponsável, a cavalo entre o nada e o infinito. comecei a chorar”. (FANON, 2008, p.126)

Trago para a complementar nossa conversa duas imagens produzidas pela artista Andressa Núbia em tempos diferentes. A primeira fez parte em 2018 da mostra ‘Afrofuturista Future Focus’, intitulada ‘Yalodé Mulheres Geradoras do Mundo’ e a segunda fotografia foi exposta em 2019 no Festival Sesc de Juventude em Madureira. Ambas fotografias têm mulheres negras como protagonistas e procuram através de seus corpos e elementos diaspóricos recriar outros mundos possíveis. Aqui o afrofuturismo não é apenas uma linguagem mas um caminho para se contar uma história. É um resgate da mitologia e cosmologia africana remixadas com a tecnologia e a ciência.

Yalodé Mulheres Geradoras do Mundo

Na fotografia (acima) que faz parte de uma série de outras imagens intituladas ‘Yalodé Mulheres Geradoras do Mundo’ podemos perceber que tanto o periferismo estético como o afrofuturismo estão presentes. No fundo vemos o que possivelmente é uma favela com casas de tijolos sem reboque e em tons de cinza e laranja. Em profundidade também se vê a “Yalodé” posicionada no meio da natureza. Plantas também em tons cinza trazendo uma referência futurística e hi-tech. Já no primeiro plano nós vemos a própria mulher geradora do mundo, grávida. Na sua barriga, em seus braços e em outras partes do seu corpo identificamos pinturas com traços africanos pintados pelo artista plástico Cruz. Raphael Cruz também é um artista contemporâneo cria de Irajá que tem um trabalho belíssimo de resgate da mitologia africana remixado com elementos periféricos. Na imagem vemos a mulher que gera o mundo em paz e ao mesmo tempo em transe como quem sabe do seu próprio poder. Tudo que está atrás dela foi ela mesma que gerou, a natureza, a vida na favela, os filhos que constroem o mundo.

Apesar da gravidez da Yalodé estar a todo tempo presente e em foco na fotografia, a mulher negra aqui não está reduzida a maternidade idealista. Ela é mais do que mãe, ela é uma deusa criadora do universo. Seu cabelo rastafari, seus adereços de prata e seu piercing no nariz trazem o encontro do passado e futuro. Do outro lado, existe uma sensualidade presente sem que ela seja sexualizada. E em seu rosto sereno também podemos ver uma dignidade de quem luta para viver e gerar vida num ambiente muitas vezes de morte, e marginalizado pela sociedade como a favela. Como Bell Hooks sinaliza, a luta das mulheres negras envolve a luta para sobreviver na diáspora.

Proteção

Na segunda imagem (acima), parte do Festival Sesc de Juventude e intitulada ‘Proteção’ vemos uma combinação entre mitologia africana e ancestralidade. Atrás vemos (do lado esquerdo) uma entidade espiritual remetendo a Oxum, um orixá da mitologia africana conhecida por ser a rainha da água doce, dona dos rios e cachoeiras, deusa da fertilidade e da vida. E do outro lado (direito) vemos uma mulher mais velha representando sabedoria, conhecimento e tradição. Em primeiro plano vemos duas mulheres mais novas juntas passando a imagem de cumplicidade, irmandade e afeto. Os acessórios são uma releitura de elementos africanos e high-tech e também vemos plantas de cura. A cores da fotografia além do branco, verde e tons de terra e pastéis também trazem o elemento da luz como algo que ilumina, conecta e transcende. Vemos presente uma identidade plural que se constrói no encontro do passado, presente e futuro.

Umlilo

Também trago para a conversa o trabalho da Umlilo, atualmente uma das artistas mais relevantes da África do Sul. Além de ser produtora musical de uma sonoridade especial que mistura a música eletrônica com alt-pop, contemporaneidades e estética avant-garde. Umlilo traz para o debate a “performer queer” celebrando o corpo de outra forma. Em suas músicas e com seu corpo, ela discute gênero a partir da ancestralidade e utiliza o “Queer” para falar de uma sexualidade africana diversa.

Em “identidade cultural e diáspora” Stuart Hall enfatiza que podemos entender o caráter traumático da experiência colonial ao reconhecer a conexão entre dominação e representação. Para ele, “as maneiras pelas quais os negros, as experiências negras,foram posicionadas e sujeitados nos regimes dominantes de representação surgiram como efeitos de um exercício crítico de poder cultural e normalização” . Sendo assim, podemos detectar que a branquitude entendeu que controlar as imagens é central para a manutenção de qualquer sistema de dominação racial. Portanto é urgente tanto produzir outras imagens que não perpassam a lógica ocidental, como expandir a discussão sobre raça e representação para além de um conjunto de imagens boas ou más.

É importante também pontuar, no primeiro caso, que quem aponta a câmera, dispara e escolhe o recorte é uma mulher negra da diáspora brasileira. No segundo caso, Umlilo é uma mulher negra sul africana que usa seu próprio corpo para discutir gênero e identidade negra. Nos dois casos, são mulheres negras interessadas tanto em questionar a estética branca e higienista como em construir imagens sobre si mesmas e seus semelhantes. Podemos observar nos elementos futurísticos e periféricos sobrepostos no trabalho fotográfico de Andressa Núbia, o desejo por fugir da ideia de uma identidade essencializada, exótica ou em apenas produzir imagens “boas”. Sabemos porém que, ser uma artista visual mulher e negra não a coloca necessariamente nesse lugar de uma narrativa não binária. É preciso mais do que isso. Um olhar descolonizado traz a subjetividade como algo complexo e complexificado, na qual, a pluriversalidade é um fundamento. Umlilo por sua vez se define como não binária e utiliza-se da performance queer para questionar a ideia de um gênero fixo e de uma identidade africana essencializada. E para completar, ela usa elementos ancestrais através da música kwaito cantada em línguas indígenas sul-africanas reivindicando uma ancestralidade que não coloniza os corpos e nem os objetifica. Neste sentido, podemos visualizar em ambas as obras um apontamento para uma identidade em constante construção que busca reconectar o passado, o presente e o futuro.